Nísia Floresta: Eternizada nas telas, escritora potiguar continua a inspirar gerações

por , publicado em 24.ago.22

O curta-metragem presenteado à figura que deu o nome à cidade é apenas uma das homenagens que a educadora tem recebido nos últimos anos

Por Aryela Souza e Raylena Evelyn do Nascimento

Algumas obras expostas no Festival Literário de Nísia Floresta em 2022
Algumas obras sobre Nísia Floresta | @prefeituranisiafloresta no Instagram.

Dionísia Gonçalves Pinto nasceu em Papari, no Rio Grande do Norte, no início do século 19. Intelectual, abolicionista, republicana, poetisa e educadora, foi a primeira escritora feminista brasileira a lutar ativamente pelos direitos femininos.

Para conseguir divulgar livremente suas ideias, consideradas muito radicais para a época, precisou fazer uso de alguns pseudônimos e preservar sua verdadeira identidade. Dentre eles, destaca-se Nísia Floresta Brasileira Augusta, ou, como preferia, simplesmente Nísia Floresta.

À frente de seu tempo, Nísia Floresta defendeu o direito à educação científica para meninas e fundou a base de gerações de mulheres que hoje podem frequentar escolas e universidades, tanto como estudantes quanto como educadoras. 

Mulher segurando um livro sobre Nísia Floresta | @prefeituranisiafloresta no Instagram.

Quem foi Nísia Floresta?

Em 12 de outubro de 1810, Papari presenciava o nascimento daquela que posteriormente se tornaria símbolo de luta e resistência para o público feminino do Nordeste brasileiro. Mais precisamente no Sítio Floresta, surgia a jornalista potiguar Dionísia, considerada a primeira feminista do país. 

A escritora começou sua carreira literária em 1831, quando passou a publicar no Espelho das Brasileiras, um jornal editado em Recife mas nativo de Pernambuco, artigos que defendiam o ideal republicano, a igualdade política dos sexos e a liberdade para os escravos. Das 30 publicações que tiveram Dionísia como redatora, em todas o periódico expunha as condições precárias das mulheres e defendia a instrução moral e cívica para a população feminina.

Devido ao uso de um pseudônimo que veio a se tornar internacionalmente prestigiado na literatura, logo ficou conhecida como Nísia Floresta Brasileira Augusta. Assim, o “Nísia” representava a parte final do seu primeiro nome (Dionísia), “Floresta” era o sítio onde tinha nascido, “Brasileira” sua referência nacionalista após um longo tempo vivendo fora do país, e a palavra “Augusta” estava diretamente ligada à lembrança de seu marido, Manoel Augusto de Faria Rocha, pai de sua filha Lívia.

Admirada por muitos e questionada por tantos outros, Nísia Floresta foi chamada, ao mesmo tempo, de notável e de mestiça, de indecorosa e de monstro sagrado. Seu pioneirismo em relação aos direitos femininos foi rechaçado com preconceito e difamação por muitos jornais da época, o que explica o fato de Nísia Floresta ainda continuar desconhecida para tantos brasileiros.

Precursora do feminismo, periodismo e literatura de autoria feminina no país, a escritora fez história ao enfrentar tantas. Desde os 14 anos, no início do século XIX, quando fugiu de um casamento forçado com um rico dono de terras, continuou a encontrar obstáculos em sua trajetória durante toda a vida, a cada texto publicado e, especialmente, ao decidir dirigir um colégio para meninas. 

Nísia viveu em diferentes estados brasileiros antes de se mudar para a Europa em 1849, em decorrência dos problemas de saúde da filha, Lívia, e, entre idas e vindas ao Brasil, 28 anos se passaram.

A educadora faleceu no dia 24 de abril de 1885, aos 75 anos, na Normandia, vítima de pneumonia, e foi enterrada no cemitério de Bonsecours. Algum tempo depois, em 1948, a comunidade de Papari, município do Rio Grande do Norte, em homenagem à filha mais ilustre de sua terra, muda o nome oficialmente para Nísia Floresta. No dia 12 de setembro de 1954, os restos mortais da educadora chegam a sua terra natal e são colocados no mausoléu construído em sua homenagem.

O legado de Nísia Floresta

A maioria das escritoras brasileiras começaram suas carreiras nos jornais antes de se atreverem a escrever livros. Com Nísia não foi diferente, porém o seu processo de transição foi incrivelmente rápido, visto que seu primeiro livro, “Direitos das Mulheres e Injustiças dos Homens”, foi publicado um ano depois de sua participação na imprensa, em 1832, quando tinha apenas 22 anos.

A obra foi inspirada no livro “Vindications of the Rights of Women”, de Mary Wollstonecraft, pioneira do feminismo na Inglaterra, escrito 40 anos antes, e foi o primeiro livro no Brasil que falava sobre a instrução da mulher, escrito por uma mulher.

Nele, Nísia refletia:

“Por que [os homens] se interessam em nos separar das ciências a que temos tanto direito como eles, senão pelo temor de que partilhemos com eles, ou mesmo os excedamos na administração dos cargos públicos, que quase sempre tão vergonhosamente desempenham?” 

Em 1853, lança Opúsculo Humanitário, livro em que a escritora nos leva a um passeio pelo papel da mulher ao longo da história e das diferentes culturas, clamando pela emancipação das mulheres e pela universalização da educação. Nele, Nísia Floresta reflete mais uma vez sobre o que a mantém nessa luta: “A esperança de que, nas gerações futuras do Brasil, ela [a mulher] assumirá a posição que lhe compete nos pode somente consolar de sua sorte presente”.

Ao longo de sua vida, até o dia de sua morte, Nísia Floresta escreveu ao todo 14 obras, hoje prestigiadas mundialmente, defendendo os direitos das mulheres, dos índios e dos escravos. 

A primeira escola para meninas

O ano era 1838, época de D. Pedro II. Fortemente influenciada pelo filósofo Augusto Comte, pai do positivismo, com quem conviveu durante suas viagens à Europa, Nísia Floresta entendia as mulheres como importantes figuras sociais, dotadas de uma identidade fundamental para o crescimento das sociedades. Para ela, quanto mais as mulheres tivessem acesso à educação, mais avançadas seriam as sociedades.

Deste modo, decidiu fundar o Colégio Augusto, uma instituição de ensino para meninas que, além das “prendas do lar”, lecionava também as disciplinas presentes nas grades curriculares das melhores escolas brasileiras da época, que coincidentemente só aceitavam meninos. 

Em 15 de março de 1827, Dom Pedro I assinou a primeira legislação no Brasil relativa ao acesso de mulheres à escola, que permitia o acesso às escolas elementares, mas impedia que as meninas se matriculassem em escolas avançadas. Contudo, quando tinham a oportunidade de ir à escola e aprender, só lhes eram ensinadas a costurar, os cuidados com o lar, as boas maneiras e as virtudes morais de uma boa mãe e esposa. Na sociedade patriarcal em vigor, a educação feminina pautava-se, sobretudo, na sua preparação para o desempenho de papéis circunscritos ao universo doméstico.

Este cenário, no entanto, mudou quando a escola de Nísia Floresta, instalada na Rua Direita nº 163 no Rio de Janeiro, passou a ensinar a gramática, escrita e leitura do português, francês e italiano, ciências naturais e sociais, matemática, música e dança às meninas, preparando-as para o exercício da vida pública e para o desenvolvimento integral.

A rivalidade acadêmica com as outras escolas rendeu-lhe críticas, sempre recheadas de preconceitos. Tais feitos renderam à Nísia não somente críticas pedagógicas, mas também ataques machistas à sua vida pessoal. Artigos nos jornais tentavam sempre depreciá-la, acusando-a de manter relações promíscuas com os homens e com suas alunas.

Na década seguinte, a escritora se mudou para Europa, onde a maioria de seus livros e colunas para jornais foram publicados. Mesmo em uma época de divulgações e distribuições limitadas, as obras de Nísia obtiveram muita repercussão no exterior, garantindo que a educadora fosse mencionada em inúmeros jornais até o final do século XIX. Mas, ainda assim, ela não conseguiu escapar das críticas de quem era contra seus pensamentos e, aos poucos, do esquecimento, assim como a maioria das escritoras de sua época.

Em 2012, foi inaugurado o Museu Nísia Floresta, localizado no município homônimo no Rio Grande do Norte, local de nascimento da jornalista e rebatizado em sua homenagem. Com o objetivo de preservar e disseminar objetos, documentos e pesquisas vinculados à memória histórica de Nísia Floresta, a instituição promove atividades permanentes de arte, cultura, educação e de incentivo ao turismo.

Estudantes e professores em frente ao Museu Nísia Floresta.

Festival Literário de Nísia Floresta

O Festival Literário de Nísia Floresta é uma iniciativa criada pela produtora cultural, Rejane Souza, e acontece, em média, a cada três ou quatro anos no município do Rio Grande do Norte, com direito a entrada gratuita. A ideia era organizar um evento de grande porte que exaltasse a simbologia da escritora que deu nome à cidade e, ao mesmo tempo, suprisse a carência por representação voltada à literatura. De certo, já havia o museu, mas uma comemoração que reunisse fãs e curiosos sobre a história de Nísia Floresta parecia ideal. 

O evento foi realizado três vezes nos últimos anos: em 2015, 2019 e 2022, respectivamente. De início, tratava-se de uma celebração simples, com uma tenda literária e palestras sobre o tema, mas a última edição, que ocorreu nos dias 9 e 10 de junho, contou com diversas atrações e foi transmitido na íntegra pelo canal do YouTube da Rede Potiguar de Televisão Educativa e Cultural (RPTV). Realizado no museu de Nísia Floresta e no corredor cultural, montado no centro da cidade, o festival teve exposições, mostras interativas, exibição de filmes baseados em obras literárias, contação de histórias, palestras, lançamento de livros, feiras, apresentações, rodas de conversas com escritores regionais e locais e até mesmo um Mercadão Social. 

Roda de conversa com escritores e estudiosos | @prefeituranisiafloresta no Instagram.

Mercadão Social | @prefeituranisiafloresta no Instagram.

Apresentação de quadrilhas | @prefeituranisiafloresta no Instagram.

Público do evento assistindo às palestras | @prefeituranisiafloresta no Instagram.

A justificativa para um evento tão marcante pode ser encontrada no lançamento histórico do curta-metragem que foi exibido no dia posterior ao Festival Literário de Nísia Floresta, no dia 11, em praça pública, no centro do município potiguar, recebendo espectadores de várias partes da região.

Exibição do curta-metragem em praça pública | @prefeituranisiafloresta no Instagram.

O filme Dionísia: Poema Além da Floresta é uma ficção inspirada na história de vida da figura homônima de Nísia Floresta e se passa nos anos de 1817 a 1824, trazendo um lado da escritora pouco conhecido pelo público. O enredo se inicia na infância de Dionísia, ao lado dos pais, passa pela adolescência e finaliza com a velhice da personagem. 

Ao apostar em um roteiro pessoal e íntimo, o curta evidencia as raízes de suas paixões e apresenta uma pessoa gentil, que respeitava a todos, sem distinção, e encontra dentro de si um desejo de lutar pelo que é certo, justo, pelo que lhe é de direito como mulher, e não apesar disso. 

A produção inteiramente potiguar, escrita e dirigida por Nilson Eloy, natural de São José de Mipibu, conta com um elenco recheado de personalidades, como a curraisnovense Titina Medeiros, e teve o apoio dos recursos da Lei Aldir Blanc do município de Nísia Floresta, da Fundação José Augusto, do Governo do Estado do Rio Grande do Norte e do Governo Federal.

Elenco do filme e seus respectivos papéis. 

Em entrevista ao JOR MAIS, a produtora executiva, Thalita Vaz, conta que foi uma grande alegria, um prazer e um privilégio participar da realização do filme, pois, quanto mais se envolvia, mais feliz e agradecida se sentia por poder estar ali. 

Thalita comenta que Dionísia: Poema Além da Floresta foi diferente de qualquer obra cinematográfica em que já trabalhou antes justamente por ser um filme de época, tendo necessidades específicas e complexas.

“Uma produção como essa demanda uma pesquisa muito mais profunda do setor de arte em geral: cenário, objetos de cena, figurino, maquiagem e cabelo. São muitos detalhes que precisamos ter atenção. Exige um preparo maior da equipe técnica toda”, explica Thalita. 

Apesar de ser um curta-metragem, haviam cerca de 22 profissionais envolvidos na produção do filme, fora o elenco. “Era um curta-metragem, mas tínhamos a sensação de estar fazendo um longa em determinados momentos”, relembra a produtora.

Thalita revela que a motivação para a escolha de Nísia Floresta como protagonista do curta, dentre várias outras figuras potiguares, partiu primeiro do diretor, Nilson Eloy, que sonhava em realizar o projeto desde 2015, quando ministrou uma oficina de cinema para alunos da rede pública de ensino no município da educadora. A luta para conseguir recursos para produzir o filme se seguiu por mais cinco anos, até que, no final de 2020, com os editais da Aldir Blanc, Eloy conseguiu parte do que precisavam e chamou a produtora executiva para participar, que por sua vez, apesar dos desafios iminentes, ficou entusiasmada para falar da escritora. Para Thalita, é um privilégio poder contar um pouco da história da mulher que foi tão fundamental para a luta feminina. 

“Tivemos, aqui no Rio Grande do Norte, muitas mulheres inspiradoras, fortes, com histórias importantes de vida. Mas Nísia foi uma das primeiras, precursora do movimento feminista no Brasil, de uma importância histórica gigantesca. Nós da terra, principalmente nós mulheres, temos que falar sobre ela.” 

A produtora conta ainda que a repercussão do filme tem sido surpreendente. Até o momento, o curta-metragem foi exibido em Natal, na casa da Ribeira, onde teve sua pré-estreia, e em Nísia Floresta, na Igreja Matriz, local do lançamento oficial. Em ambos os casos, houve uma grande procura do público. 

Na capital do estado, Thalita conta que eles planejaram duas sessões, porém os ingressos foram vendidos em três dias e precisaram adicionar uma sessão extra, que também se esgotou em 24 horas. Para a produtora, o resultado não poderia ter sido mais satisfatório.

“Foi muito legal ver a reação do público, na sua maioria saindo da sala de cinema pedindo mais, pedindo pra gente a continuação da história porque gostaram muito. Então é muito gratificante ver as pessoas curtindo e aplaudindo o trabalho de toda uma equipe e elenco que é da nossa terra, falando sobre Nísia e querendo mais.”

Contudo, se você ainda não conseguiu garantir seu ingresso para prestigiar de perto a obra cinematográfica que representa o feminismo do Brasil em carne e osso, não se desespere. Thalita Vaz tem boas notícias para os leitores do JOR MAIS: “Pretendemos organizar mais exibições aqui por Natal e em outros municípios próximos. Estou vendo de fazer uma exibição na UFRN e na IFRN. Fiquem ligados no nosso Instagram que sempre vamos atualizar por lá quando tiver novidades.”

Por hora, se quiser saber mais sobre Nísia Floresta, indicamos o livro “Nísia Floresta: Uma mulher à frente do seu tempo” da Fundação Ulysses, cuja versão em PDF pode ser encontrada aqui. E não se esqueça também de aproveitar o teaser de Dionísia: Poema Além da Floresta, assistindo o trailer.